A ocorrência de contaminações em alimentos por microrganismos e por toxinas produzidas por microrganismos é um importante tema de saúde pública que ocorre de maneira frequente em nossa sociedade. A análise destes acontecimentos sob a perspectiva bromatológica fornece importantes ferramentas e conhecimentos para o desenvolver de um pensamento crítico no assunto e propor melhorias para a proteção da comunidade como um todo.
Um estudo do caso envolvendo a rede fast food de comida mexicana Chipotle, nos Estados Unidos, fornece um exemplo da dimensão do problema das tóxico-infecções em alimentos. O agente etiológico promotor do surto de infecção foi a enterobactéria Escherichia coli produtora de toxina Shiga do sorogrupo O26. Este agente é encontrado em diversos países no gado bovino saudável, sendo este animal um possível reservatório para a bactéria. A transmissão deste microorganismo pode ocorrer por três vias: contato direto com animais, contato com humanos e o consumo de água e alimentos contaminados, o que pode ser ainda resultado de uma contaminação cruzada.
As manifestações clínicas de uma infecção por estes
microrganismos podem se apresentar desde uma forma branda (envolvendo
principalmente diarreia abundante por mais de três dias consecutivos com dores
abdominais), podendo evoluir para a forma grave, levando à Síndrome Hemolítica
Urêmica (SHU) por ação das toxinas secretadas pela bactéria. Esta síndrome está
associada à quadros de anemia hemolítica, lesões vasculares e insuficiência
renal. A forma grave, em geral, acomete indivíduos imunossuprimidos, crianças e
idosos.
Descrição do caso
No surto de infecção da rede Chipotle, as
manifestações clínicas tiveram início em outubro de 2015 e até em 2016 foram
identificadas indivíduos infectados. Este estudo de caso envolveu dois surtos,
sendo que o primeiro abrangeu 11 estados americanos, totalizando 55 pessoas com
21 hospitalizações. Já no segundo, de menor proporção, os casos foram distribuídos
em 3 estados, totalizando 5 pessoas com
1 hospitalização. Não houve evento de SHU. As evidências do patógeno levaram a
uma investigação por órgãos competentes como o Center for Disease Control and
Prevention (CDC), Food and Drug Administration (FDA), Departamento de segurança
de alimentos agrícolas e serviços de inspeção dos Estados Unidos, bem como
oficiais de segurança pública de vários estados.
As pesquisas epidemiológicas indicaram que 47 pessoas
do primeiro surto e todas do segundo surto relataram ter feito uma refeição
nesta rede na última semana antes da infecção. A maioria ingeriu vários dos
mesmos ingredientes, sendo que uma pessoa era vegetariana. Investigações nos
estabelecimentos não identificaram itens contaminados, e os funcionários investigados
também não apresentaram infecção por Escherichia coli. As análises conduzidas sobre os relatórios de
distribuição dos alimentos foram incapazes de identificar um único item como
fonte da contaminação. Por se tratar de um caso onde os alimentos são
provenientes de diversas fontes e servidos misturados, observa-se a dificuldade
técnica do estudo epidemiológico para identificar um item isolado como a fonte
de contaminação microbiológica.
As pesquisas de laboratório com técnicas de biologia
molecular indicaram a presença de Escherichia
coli do sorogrupo O26. Observou-se uma grande relação genética entre os
isolados de bactérias obtidos em diferentes estados no primeiro surto. Sendo
assim, ainda que a infecção tenha ocorrido em estados diferentes, ela teve uma
origem comum.
Fundamentos Bromatológicos
A presença de Escherichia
coli em alimentos é um dado de extrema relevância, pois além de ser um
indicador de contaminação fecal, pode sugerir contaminação por cepas
bacterianas patogênicas, que são de difícil diferenciação, somente possível por
métodos moleculares, analisando a presença de genes de virulência.
Estudos conduzidos em outras oportunidades por
diferentes grupos de pesquisa já notificaram a presença de subtipos semelhantes
de Escherichia coli produtora de toxina Shiga do sorogrupo O26, tanto em
animais quanto em humanos, no Brasil. Estes dados sugerem que estas infecções
são subnotificadas e servem de alerta para os riscos de infecções por este
microrganismo no território nacional. Associado a este risco, adiciona-se que o
Brasil faz fronteira com a Argentina, país considerado como área endêmica de
SHU.
O caso noticiado da rede de fast food americana
Chipotle, a conduta executada de forma integrada e compulsória por órgãos
regulatórios americanos (CDC, FDA, departamentos de segurança de alimentos de
origem agrícola e oficiais públicos de diferentes estados) e os aspectos
regulatórios associados ao assunto trazem informações valiosas para o estudo
bromatológico das tóxico-infecções alimentares.
A notificação compulsória de casos de tóxico-infecções
nos Estados Unidos é um modelo importante para o controle de casos e também
para a geração de medidas eficazes para combater surtos de contaminação
microbiológica nos alimentos.
As condições precárias em que muitas vezes se
encontram os estabelecimentos que comercializam alimentos (restaurantes,
cantinas, barracas de rua e, recentemente, os food trucks), noticiada de
forma recorrente nos veículos de comunicação, sinalizam o risco das
tóxico-infecções em alimentos para a população brasileira. Associado a este
risco, observa-se também a subnotificação dos casos de tóxico-infecções
alimentares no Brasil, o que acaba minimizando as dimensões deste problema de
saúde pública.
Uma pesquisa bibliográfica da legislação nacional
vigente, com auxílio de textos científicos já publicados, foi conduzida a fim
de identificar os esforços normativos e parâmetros estabelecidos por órgãos
fiscalizatórios para caracterizar as tóxico-infecções alimentares e estabelecer
ações preventivas. A legislação referente ao assunto é extensa e se aplica à
diferentes aspectos dos casos de contaminação microbiológica em alimentos. O
estudo aqui descrito não se propõe a descrever os aspectos da legislação em toda
a sua extensão e complexidade, mas fornecer referências e pontuar tópicos
específicos para aqueles que se interessarem e desejarem conhecer mais sobre o
assunto.
Tendo em vista o surto de tóxico-infecção nos
alimentos da rede Chipotle, a investigação conduzida pelas autoridades
competentes não foi capaz de identificar a fonte exata da contaminação, apesar
dos esforços desprendidos. Prováveis fontes alimentares contaminadas com os
microrganismos responsáveis pelo surto são: as carnes processadas industrialmente,
os frutos, as verduras, legumes e outros ingredientes de origem vegetal (tais
como alface, pepino, jalapeños, cebolas, tomate).
Legislação pertinente
Avaliando a legislação nacional existente, observa-se,
de uma forma geral, a descrição de requisitos gerais e específicos nos
regulamentos técnicos dos alimentos que visam a proteção do consumidor. Como
exemplo, a resolução da diretoria colegiada (RDC) nº 272/2005, da ANVISA,
estabelece o regulamento técnico para produtos vegetais e produtos de frutas.
Neste regulamento, um requisito geral no item 6.1 estabelece que "os
produtos devem ser obtidos, processados, embalados, armazenados, transportados
e conservados em condições que não produzam, desenvolvam e ou agreguem
substâncias físicas, químicas ou biológicas que coloquem em risco a saúde do
consumidor. Deve ser obedecida a legislação vigente de Boas Práticas de
Fabricação”.
A Secretaria de Vigilância em Saúde disponibiliza
também um Manual integrado de prevenção e controle de doenças transmitidas por
alimentos (DTA), que descreve o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica
das Doenças transmitidas por Alimentos. Este sistema tem por objetivo reduzir a
incidência das DTA no Brasil a partir do conhecimento do problema e de sua
magnitude, subsidiar as medidas de prevenção e controle, contribuindo para
melhoria da qualidade de vida da população.
A RDC nº17/1999 aprova um regulamento técnico
importante para proteção da saúde da população, que descreve as Diretrizes
básicas para a Avaliação de Risco e Segurança dos Alimentos. Este regulamento
define conceitos importantes como o risco, análise de risco e avaliação de
risco. Estabelece ainda de que forma a comprovação
de segurança em alimentos deve ser conduzida.
A RDC nº12/2001 possui importância nesta pesquisa de
referências oficiais, pois aprova o regulamento técnico que estabelece os
padrões microbiológicos sanitários para alimentos e determina os critérios para
conclusão e interpretação dos resultados de análises microbiológicas em
alimentos destinados para consumo humano.
A RDC nº216/2004, por sua vez, estabelece o
regulamento técnico para Boas Práticas em Serviço de Alimentação a fim de
garantir as condições higiênico-sanitárias do alimento preparado. As
definições, referências e caracterização da estrutura física do local de oferta
do serviço alimentar ressaltam importantes aspectos da cadeia de processos aos
quais os alimentos estão submetidos e etapas do processo onde pode ocorrer a
contaminação com microrganismos.
Análise e Comentários
Um esquema representativo da cadeia de processos
realizados sobre o alimento até o consumo final está indicado na figura 1.
Figura 1. Processos conduzidos sobre um alimento
antes de seu consumo.
Diante das diversas etapas apresentadas na cadeia de
processos, todas passíveis de promover contaminação microbiológica nos
alimentos e consequentemente resultar em possíveis tóxico-infecções
alimentares, observa-se a relevância do assunto e a importância de investimento
de medidas para reduzir estas contaminações.
Dentre as medidas estabelecidas pela rede de fast
food Chipotle para combater o surto e prevenir a ocorrência de novos
surtos, destacam-se:
1. Aumento do rigor no
controle de qualidade, inspeções e auditorias
2. Lavagem e testagem
de alimentos em cozinhas centrais antes da distribuição dos ingredientes serem
enviados aos restaurantes da rede (figura 2).
3. Aprimoramento dos
processos de descontaminação dos alimentos e frequência das limpezas e sanitizações das áreas
físicas.
4. Incentivo e
implementação de
treinamento de recursos humanos em boas práticas de manipulação de alimentos.
Figura 2. Metodologia de lavagem de alimentos
para redução da contaminação
As medidas e ações preventivas vão desde a capacitação
de recursos humanos que trabalham nas
diversas etapas de processamento do alimento em serviços alimentares (Ex:
coleta, obtenção, processamento industrial, manipulação no local de oferta de
alimento), passam pelo investimento em adequação nas áreas de armazenamento,
processamento e transporte, treinamento em medidas de higienização, sanitização, métodos de amostragem e
avaliação da contaminação de alimentos, e se integram ainda as necessidades de
atualização, revisão e aprimoramento das normas, regulamentos técnicos,
manuais, resoluções e ações de fiscalização por órgãos competentes.
A abordagem das tóxico-infecções alimentares
sob a perspectiva bromatológica proposta neste estudo permite absorver
importantes conceitos, levantar questionamentos e conscientizar tanto os
profissionais como a população como um todo quanto ao problema de saúde pública
em questão. Esta conscientização e a disponibilidade de informações na
literatura devem, portanto, orientar medidas e ações que se convertam na
redução dos surtos de infecções em humanos e valorização da saúde humana.
ALUNOS: Felipe Ramos e Pamela Rosa
Referências:
ANVISA. Resolução nº 272, de 22 de setembro de 2005.
Aprova o REGULAMENTO TÉCNICO PARA PRODUTOS DE VEGETAIS, PRODUTOS DE FRUTAS E
COGUMELOS COMESTÍVEIS. D.O.U. - Diário Oficial da União; Poder Executivo, de 23
de setembro de 2005.
ANVISA. Resolução nº 12, de 02 de janeiro de 2001.
Aprova o Regulamento Técnico sobre os padrões microbiológicos para
alimentos.
ANVISA. Resolução nº 17, de 30 de abril de 1999.
Aprova o Regulamento Técnico que estabelece as Diretrizes Básicas para a
Avaliação de Risco e Segurança dos Alimentos. D.O.U. - Diário Oficial da União;
Poder Executivo, de 03 de maio de 1999
ANVISA. Resolução nº 216, de 15 de setembro de 2004.
Dispõe sobre Regulamento Técnico de Boas Práticas para Serviços de
Alimentação. D.O.U. - Diário Oficial da
União; Poder Executivo, de 16 de setembro de 2004
BERTÃO,
A. M. S.; SARIDAKIS, H. O. Escherichia
coli produtora de toxina shiga (STEC): principais fatores de virulência e
dados epidemiológicos. Ciências Biológicas e da Saúde: Londrina. 28 (2): 81-92,
2007.
CALDORIN,
M., et al. Ocorrência de Escherichia coli
produtora de toxina Shiga (STEC) no Brasil e sua importância em saúde pública. Boletim Epidemiológico
Paulista: São Paulo. 10 (110): 4-20, 2013.
NESPOLO,
N. M., et al. Ocorrência de Escherichia
coli O157:H7 e O26 sorbitol negativas e, matadouro frigorífico de bovino e
susceptibilidade a antimicrobianos. Arq. Inst. Biol., 81 (3): 209-217, 2014.
Conforme diz a publicação, os coliformes fecais estão também, constantemente relacionados com o conceito de segurança alimentar, visando a proteção à saúde da população e a regulamentação dos padrões microbiológicos para os mesmos. Existe uma resolução, regulamentada pela ANVISA que define a concentração de coliformes termotolerantes em cada tipo de alimento, sendo de fundamental importancia para que se previna a saúde da população.
ResponderExcluirE para que se confirme a presença dos coliformes fecais, é importante saber que se utiliza o caldo EC (Escherichia coli), por eles serem definidos como coliformes capazes de fermentar a lactose, com produção de gás, no período de 48 horas, a 45,5 ºC.
As bactérias do grupo dos coliformes são utilizadas em larga escala nas medições microbiológicas que testam a qualidade da água e de alimentos para que as pessoas os consumam sem riscos maiores. Então, considerando a relação diretamente proporcional, quanto maior o índice de presença de coliformes, mais a água ou o alimento está contaminado.
ResponderExcluirExistem dois tipos de coliformes: totais e fecais. Os coliformes totais compõem os grupos de bactérias gram-negativas que podem ser aeróbicas ou anaeróbicas, não originam esporos e fermentam a lactose, produzindo ácido e gás à 35/37°C.
Já os coliformes fecais são também conhecidos como “termotolerantes” por suportarem uma temperatura superior à 40°C. São excretados em grande quantidade nas fezes e normalmente não causam doenças (quando estão no trato digestivo). Neste grupo está presente a bactéria gram-negativa Escherichia coli,abordado no trabalho acima, e ao se ingerir alimentos por ela contaminados, os resultados desagradáveis (como uma gastrenterite, por exemplo) podem ser brandos ou desastrosos, dependendo do grau de contaminação.
O caso descrito pelo post do trabalho, infelizmente, não se trata de um caso isolado, o que é muito preocupante, ao meu ver, pela contaminação de coliformes fecais ou totais em alimentos ser mais corriqueira que deveria ser. Periodicamente, são publicadas notícias sobre contaminação por E. coli em diversas redes de restaurante, seja na presença de alimentos ou do sistema de água. Algumas mudanças simples e acessíveis são suficientes para evitar esse tipo de situação. As medidas preventivas devem ser reforçadas e instruídas aos funcionários, visto que as contaminações podem ser devido à manipulação inadequada dos alimentos e refrigeração insuficiente, por exemplo. Uma das formas de se determinar a qualidade de um alimento é pelo controle da qualidade analítica. Essa técnica enfoca a abordagem na inspeção, durante a produção do alimento, até a execução de testes físico-químicos, químicos e microbiológicos no produto final. Desta forma, assegura-se a qualidade microbiológica, que tem o objetivo de fornecer alimentos seguros, do ponto de vista higiênico-sanitário.
ResponderExcluirÉ importante lembrar que Coliformes fecais são definidos como coliformes que possuem a capacidade de fermentar a lactose com produção de gás em 48 h a 45ºC. Assim, Escherichia coli, juntamente com algumas cepas como Klebsiella e Enterobacter por exemplo, podem apresentar essas mesmas características. Porém, somente a presença de Escherichia coli em alimentos indica contaminação fecal, por ser encontrada em grande quantidade no trato gastrointestinal do homem e animais como já mencionado. Logo, é incorreta a associação direta da presença de coliformes "termotolerantes" em alimentos e água com contaminação de origem fecal. Este dado levou à ANVISA modificar a denominação clássica de coliformes fecais para coliformes a 45ºC na RDC nº12/2001 que foi mencionada no texto. É evidente que as medidas de controle de qualidade e ações preventivas se fazem necessárias e são as melhores estratégias para garantir alimentos seguros e livre de possíveis contaminantes prejudiciais a saúde.
ResponderExcluirComo bem colocado pelos autores redes de fast food assim como redes de restaurantes deveriam estar mais atentas quanto a toda cadeia de processos sobre o alimento, porém mais intensificamente quanto a higienização de alimentos, materiais e processos de manipulação do mesmo de modo a evitar contaminação dos produtos finais e infecção do consumidor. Existem diversas cartilhas educativas disponibilizadas por órgãos sanitários que tem por objetivo evitar a contaminação dos alimentos durante o processo produtivo, sendo assim não há desculpas para esse tipo de falha. A intensificação e rotina dos cuidados com a manipulação de alimentos deveria ser prioridade desses estabelecimentos tendo em vista a saúde do consumidor.
ResponderExcluir