A tradicional cerveja alemã é preparada utilizando somente cereais não maltados. No Brasil, a legislação vigente aceita até 45% da composição com adjuntos não maltados, como o milho. Será que as empresas brasileiras estão respeitando esses limites e estão deixando claro o uso desses adjuntos nas cervejas? Quais seriam as implicações para o consumidor? Leia mais.
O brasil é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, produzindo mais de 13 bilhões de litros de cerveja no ano de 2012 e é uma das bebidas mais consumidas no território brasileiro (1). Entretanto, o conteúdo das cervejas ainda é um mistério para boa parte da população, e por isso, o presente estudo vem mostrar a participação de adjuntos não maltados, como o milho, na composição das cervejas brasileiras. O milho é uma alternativa mais barata que a cevada para produzir a cerveja, portanto, é uma lei que ampara os interesses econômicos das grandes cervejarias. Por sua vez, as indústrias se defendem ao dizer que a adição desses melhora a palatabilidade e não altera a qualidade da cerveja (2).
A lei da pureza da Baviera, estabelecida a mais de 500 anos, determina que somente cereais maltados sejam utilizados na receita para manter a qualidade da cerveja (figura 1), contudo, hoje em dia, o órgão regulador, que no Brasil é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) aprova a adição de cereais não maltados até o máximo de 45% da composição (3). Dessa forma, será investigado se as cervejas estão cumprindo com a legislação no que diz respeito a composição e rotulagem e o que a presença de milho na cerveja implica ao consumidor em relação a sua saúde.
Figura 1. Cerveja Alemã com o selo de produção de acordo com a lei da pureza da Baviera
Fundamentos bromatológicos
Entende-se como cerveja a bebida obtida pela fermentação alcoólica do mosto cervejeiro oriundo do malte de cevada e água potável, por ação da levedura, com adição de lúpulo (3). O mosto nada mais é que o cozimento do malte em água quente. Depois essa mistura é levado a fervura, é adicionado o lúpulo, que confere o amargor e aroma à cerveja, e por fim, o fermento composto de Saccharomyces cerevisiae é adicionado para fazer a fermentação, que pode durar dias (2). Algumas alterações no processo, como tempo de fermentação, temperatura e qualidade da água podem influenciar na qualidade final do produto.
Atualmente, a legislação vigente permite a adição de adjuntos não maltados, que podem ser arroz, centeio, aveia e milho. O milho, que é o foco dessa pesquisa, é utilizado em quase todas as cervejas brasileiras. Esses adjuntos são adicionados durante o processo de mostura do malte, e sua composição nas cervejas varia de acordo com o tipo de cerveja que se está produzindo. Contudo, nos rótulos da maioria das cervejas não esta sendo especificado qual desses adjuntos estão presentes na fórmula e isso não é bom no que diz respeito ao consumidor, pois o amido do milho é considerado um alérgeno e muitas pessoas apresentam alergia ao milho. Outro aspecto é que boa parte do milho produzido no brasil é transgênico (4), o que desperta a questão da biossegurança, uma vez que não é provado que alimentos transgênicos são inofensivos, pois pesquisas correlacionando o seu uso com o desenvolvimento de certos tipos de cânceres são inconclusivas.
A legislação vigente que regula a padronização, a classificação, o registro, a inspeção e a fiscalização da produção e do comércio de bebidas é o DECRETO Nº 6.871, DE 4 DE JUNHO DE 2009. No capitulo VI, O artigo 38 da seção III classifica a cerveja em: 1) cerveja de puro malte, quando o único ingrediente fonte de açúcares é o malte de cevada; 2) cerveja, quando possuir proporção de malte de cevada maior ou igual a 55% em peso, sobre o extrato primitivo, como fonte de açúcares; ou 3) "Cerveja de ...", seguida do nome do vegetal predominante, aquela que possuir proporção de malte de cevada maior que 20% e menor que 55%, em peso, sobre o extrato primitivo, como fonte de açúcares (enquadrados aqui as cervejas de trigo, por exemplo). Portanto, os adjuntos são permitidos na cerveja até uma concentração de 45% sem descaracterizá-la como uma cerveja de cevada (3).
Um outro aspecto válido de mencionar é a questão da rotulagem. Algumas cervejas apresenta em seu rótulo como ingredientes "cereais não maltados", não especificando qual cereal foi utilizado. O capítulo V do mesmo decreto regulamenta rotulagem de bebidas, porém não deixa claro como os ingredientes devem ser expostos na embalagem, então se o fabricante julga que cereais não maltados é um ingrediente, é dessa forma que ele vai retratar no rótulo.
Entretanto, um parágrafo abaixo está evidenciado o seguinte: "O rótulo da bebida não deverá conter informação que suscite dúvida ou que seja falsa, incorreta, insuficiente ou que venha a induzir a equívoco, erro, confusão ou engano, em relação à identidade, composição, classificação, padronização, natureza, origem, tipo, qualidade, rendimento ou forma de consumo da bebida, nem lhe atribuir qualidade terapêutica ou medicamentosa."
Portanto, ao mesmo tempo que não seja especificado como os ingredientes devem ser apresentados no rótulos, a indústria não podem deixar dúvida ao consumidor quanto a composição, uma vez que ele não saberia que a cerveja contém milho se fosse apresentada somente a frase "contém cereais não maltados", como acontece em muitas cervejas (figura 2).
Figura 2. Rótulo de cerveja brasileira e seus ingredientes, contendo a expressão "cereais não maltados".
Para analisar o teor de cereais não maltados na cerveja, um grupo do Laboratório de Ecologia Isotópica do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (USP) fez um estudo através de espectrômetro de massas para avaliar a composição do isótopo 13C. As diferentes composição isotópicas revelam diferentes origem botânicas (5), pois as plantas diferem no processo bioquímico de como fixam o carbono, ou seja, têm ciclos fotossintéticos diferentes. Existem 3 ciclos: C3, C4 e CAM, onde C3 é o ciclo realizado pela cevada e o C4 o ciclo realizado pelo milho (5). A razão isotópica de carbono varia com o ciclo e através da análise da razão isotópica das cervejas, pode-se chegar a conclusão da porcentagem de derivados de planta C3 (cevada, por exemplo), e de plantas C4 (milho, por exemplo), quando comparados à razão isotópica de um padrão de milho e cevada. A tabela abaixo representa a composição encontrada nesse estudo:
A primeira coluna apresenta o nome das amostras analisadas, e a segunda apresenta a razão isotópica, que através de cálculos, mensura a porcentagem de cevada (planta C3) e de milho (Planta C4) na cerveja (colunas subsequentes). Como vemos, a composição de milho (planta C4) está além dos 45% regulamentados pelo decreto 6871 em algumas marcas popularmente consumidas, como Brahma, Bavaria, Schincariol, Skol, Bohemia e Antarctica. Outras estão dentro do regulamentado, como a Itaipava, Crystal e Conti. Porém, a maioria das cervejas analisadas pelo grupo de Rossete e outros estão fora do estabelecido pela legislação quando levado em consideração apenas este método. Como nem todos os cereais não maltados são plantas C4 (Ex: arroz é uma planta C3), esse método é um bom indicativo para avaliar o teor de milho na cerveja, mas pode subestimar o valor total de cereais não maltados, uma vez que não difere a cevada do arroz (6).
Portanto, todas as cervejas analisadas contém milho em sua formulação, a maioria com teores acima do normatizado, e o rótulo de muitas delas não menciona sequer o fato de elas conterem milho, o que pode confundir o consumidor. Embora a legislação não seja muito clara, o código do consumidor preconiza:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. (9)
A composição de certas cervejas não está clara e não evidencia a presença do milho (Figura 2), e isso pode acarretar prejuízos ao consumidor, pois é seu direito fazer suas escolhas baseado na informações fornecidas. Como já foi dito, muita parte do milho produzido no brasil é transgênico e certamente milho transgênico é utilizado na fabricação de cervejas. É direito do consumidor de saber tanto da presença do milho quanto da presença de transgênicos (Decreto 4.680/2003) para fazer suas escolhas. Além disso, pessoas alérgicas a milho estariam impossibilitadas de saber da presença destes baseado no rótulo de algumas cervejarias, o que poderia trazer consequências sua saúde
A maioria das cervejas brasileiras apresentam alto teor de milho em sua composição, em alguns casos até ultrapassando o limite estabelecido. A legislação deixa claro que o máximo de adjuntos não maltados deve ser de 45%, mas não deixa tão claro assim como fazer a especificação de cada um no rótulo. Deveria haver uma maior fiscalização reguladora para colocar as fabricantes dentro dos limites estipulados para que o excesso de milho não descaracterize o produto. Além disso, seria mais adequado apontar qual cereal está sendo usado na fabricação do produto através de uma lei menos ambígua e que favoreça o consumidor tanto quanto tem favorecido as indústrias.
1."MAPA atua na modernização da legislação do setor cervejeiro." Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/arq_editor/informativo%20cerveja%20_2_.pdf> Acessado em 28/07/2016
2. "Cervejas brasileiras podem conter até 45% de milho em sua fórmula." Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2014/09/cervejas-brasileiras-podem-conter-ate-45-de-milho-em-sua-formula-4599396.html> Acessado em 29/07/2016
3. BRASIL. DECRETO Nº 6.871, DE 4 DE JUNHO DE 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6871.htm> Acessado em 29/07/2016
4. "Área com transgênicos atinge 40 milhões de hectares na safra 2013/14." Disponível em: <http://www.agrolink.com.br/noticias/area-com-transgenicos-atinge-40-milhoes-de-hectares-na-safra-2013-14_188709.html> Acessado em 30/07/2016
5. Rossete, A. L. M. R.; Lopes, F.; Martinelli, L. A.; Bendassolli, J. A. Determinação da razão isotópica de carbono 13 de cervejas clara tipo Pilsen nacional. Centro de Engenharia Nuclear na Agricultura (CENA). Disponnível em: <https://www.ipen.br/biblioteca/cd/inac/2002/ENAN/E08/E08_207.PDF> Acessado em 29/07/2016
6. OLIVEIRA, Ana Cristina B. et al . Isótopos estáveis e produção de bebidas: de onde vem o carbono que consumimos?. Ciênc. Tecnol. Aliment., Campinas , v. 22, n. 3, p. 285-288, Dec. 2002 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-20612002000300015&lng=en&nrm=iso>. Acesado em 30/07/2016
7. BRASIL. DECRETO Nº 4.680, DE 24 DE ABRIL DE 2003. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4680.htm> Acessado em 30/07/2016
8. BRASIL. Lista geral de registro de bebidas. Disponível em: <http://www.agricultura.gov.br/vegetal/qualidade-seguranca-alimentos-bebidas/bebidas> Acessado em 28/07/2016
9. BRASIL. LEI Nº 8.078, DE 11 DE SETEMBRO DE 1990. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm> Acessado em 30/07/2016
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